14 de dezembro de 2011

Meu Barão







Em nada resistem ao tempo, nem o amor e a beleza. Homens envelhecem e mulheres apodrecem.
N.T

Após tanto tempo de fumo e tabaco, ou os dentes caíram ou os sobreviventes estavam estragados... Ele inspirava e sentia o fedor do próprio hálito. O Barão era um covarde. Um velho covarde de carcaça asseada com título de nobre! O roupão sustentava um brasão que - para ele - representava o fardamento militar digno dos poucos remanescentes vivos da guerra.

Ao erguer a cabeça e andar com o nariz empinado, ele fazia questão de mostrar o quanto ostentava essa valiosa honraria, e o quanto isso o fazia se sentir diferenciada. O Barão habitava em um mundo peculiar velho e cansado da terceira idade. A usa mente era um antiquário dos valores e princípios da Segunda Guerra, onde ele era mais um hóspede dos asilos da consciência, em que doía o calor de um peido, e ele temia que fosse próstata. Ele era um sobrevivente do tempo, ornamento de antigos bazares. Sua época havia passado, seu mundo e geração se diluíram com o tempo, e ele sabia disso. Agora a realidade era bem hostil com pessoas da sua idade, e a única maneira de se impor era mantendo uma raivosa e violenta resistência a tudo o que representasse o contrário - o presente era uma ameaça.

Meu Barão não estava nem ai para o amor. Várias e várias vezes o ouvi dizer que preferia morrer mendigo nas ruas ou velhaco em um asilo a perder a liberdade, por um segundo, na ilusória solidariedade da família moderna entre mulher e filhos. Para o Barão, a cara metade deveria ser semelhante a dois testículos que a gente compra em saquinho - bem fresquinhos - no supermercado no domingo pela manhã. Se para o amor era necessário ter coração, confiança e paciência, confesso que o Barão não tinha nenhuma dessas qualidades.

Com oitenta e quatro anos, já fez sexo. Cagou a vida de umas trezentas mulheres. Foi o pior homem de todas elas. E sempre que poderia ter sido diferente, fez questão que tudo acontece e terminasse da mesma forma. Meu Barão era um cabeça dura mesmo. Bobo e besta para os amigos, uma peste para as amantes. Se recusou a vida toda a chamar qualquer mulher por um apelido carinhoso. Achava isso impessoal e ridículo só de ouvir pela boca dos outros. Para ele, ninguém – e até ele mesmo – nunca foi digno de “tão honrosa insígnia”. E por incrível que pareça, ele nunca foi um desses tipos machistas de homem das cavernas que acha que o certo é usar e descartar. O Meu Barão simplesmente era assim.

Desde quando seu juízo começou a ser iluminado pela luz das razões da vida, e suas costas começaram a ficar sobrecarregadas pelos pesos das obrigações ordinárias do dia a dia, o Barão sempre soube que se um dia ele quisesse ter algo na vida, teria que estudar e trabalhar muito. Pois o pai foi um filho de uma puta sertanejo abastado e abençoado, sem estudos, que conseguiu mundos e fundos, o que podia ter e o que não pôde; depois jogou tudo para o ar se tornando alcoólatra e tuberculoso morto por uma série de doenças venéreas. Não era mais a fase do garimpo, mas ele viveu como se fosse.

Quando o conheceu, sua mãe era apenas uma moça virgem, quinze anos mais jovem, que sofreu muito com a indolência, machismo e experiência do marido. Após o nascimento do filho, ela se vendeu para o conforto chauvinista oferecido por ele em todas as suas garantias como dona de casa onde não lhe faltariam nada, e acabou se doando de corpo e alma para a maternidade, pois na verdade, ela o amava e também sabia que o marido sentia o mesmo. Ambas as escolhas foram o bastante para que ela se castrasse pelo resta da vida para as ambições mundanas e não quisesse mais nada; o que depois na velhice, foi culminante para fazer renascer dentro de si fobias e síndromes diversas que lhe angustiaram e assombrariam até o último sopro de vida, em forma do passado de uma mente idosa, frágil e desgastada cujas potencialidades foram reprimidas. “Eu fui uma singular dona de casa frustrada!” Estas foram suas últimas palavras. O Meu Barão foi à única testemunha dessa frase imortal. Se ele fosse algo mais próximo dos humanos, teria derrama aos menos uma lágrima. Mas, a essa altura, Meu Barão já não podia ser mais nada.

As famílias eram assim: Em uma habitava um covil em que eles insistiam em classificar de cortiço familiar, mas só havia cobras. Era uma tia intimamente frustrada cheia de insatisfação sexual e amorosa, que nunca havia lido ou sequer ouviu falar de Kafka, mas, inconscientemente, persistira em trilhar o mesmo caminho de Gregor Samsa. Outras passaram a infância na miséria vendendo bolos de fubá em cabarés, e agora não suportavam comer maizena. A maioria não conseguiu segurar os maridos. Eram quase todas tias-avós. E os poucos cavaleiros - cavalos – valentes que ousaram cruzar até o final com essas senhoras os embates violentos e perigosos do matrimônio, acabaram tendo um AVC e terminaram imóveis como vegetais sentados em uma cadeira de rodas. A caçula, vendo os repetitivos fracassos das irmãs mais velhas, nem perdeu tempo na luta e cedo decidiu colar o velcro. E mesmo assim, as mulheres dessa família - bem ou mal - eram as únicas que faziam algo. A exemplo do bisavô, todos os homens – da primeira geração até a última – eram um monte de bostas. Tios, primos, sobrinhos, genros e cunhados seguiam o mesmo exemplar. E as nuances da mediocridade iam diminuindo progressivamente de acordo em que a linhagem ia se distanciando dos primeiros moldes. “Causas frouxas!” Era isso que o Barão vivia repetindo ao espelho e nos almoços familiares. Naquele estabelecimento, ele conseguia sentir mais apego e candura a ternura dos gestos sutis de uma barata, ou então, em receber um desodorante como presente de aniversário, a qualquer afeição por aqueles patéticos e imbecis seres.

Mais velhas, as primas cresciam, descobriam os prazeres e a importância do sexo, se apaixonavam por vagabundos, mas no final, sempre acabavam se envolvendo com o jogo do bicho só para poderem ir uma vez por ano a Las Vegas. Nenhuma delas teve coragem, e semi-analfabetas, elas nem sabiam em que país ficava Nevada, mas sentiam que estar ali lhes davam status, o que equivalia ao mesmo que dar colares de diamantes aos porcos. Outras começaram a trair o marido só para transarem com um terno Giorgio Armani. E tudo isso o Barão assistia de longe sem dar a mínima para esses bastardos. Mas o Barão, não! Mesmo em meio a toda essa deformidade, desde criança ele carregava os genes da mutação que um dia iria lhe fazer romper toda essa herança ordinária. Espiritualmente, há muito ele já vinha destroçando essa sin ne qua non mental.

Pelo tamanho do pau, o bisavô materno do Barão só poderia ter sido um português de olhos azuis, e a bisavó, uma negra dos dentes de marfim. Portanto, contrariando a superficialidade da alvidez das camadas da epiderme, o Barão era mulato e nutria com muito orgulho isso. Ainda na fase de virilidade, o que o Barão mais gostava era de sexo, mulheres, bebidas e mais sexo. E toda essa mistura ele fazia com muita responsabilidade. Nunca perdeu a cabeça por nenhuma delas. Os estudos e o trabalho sempre vieram em prioridade. Ele nunca exaltava os fins em detrimento dos meios, pois como um bom filósofo, havia descoberto racionalmente que tudo aquilo que nos possibilita conseguir o que mais ambicionamos era sempre mais importante do que os próprios fins. Assim, com muita determinação, esforço, disciplina e dedicação, o Barão obteve tudo o que queria. Era esta a sua pirâmide motivacional muito bem elaborada. Pois foi assim que ele construiu a base de sua vida alicerçada nos valores estáveis em que ele poderia exercer controle sólido e efetivo.

Seguidor do Príncipe, ele buscava incessantemente minimizar ao máximo a influência do acaso. No entanto, nunca foi patético ao ponto de pretender querer ser deus. Sabia que o fardo era pesadíssimo e somente o próprio havia nascido com ombros largos, rijos e fortes o bastante para carregar tão pesada penitência. Por isso o admirava. Mas de uma forma muito intima e pessoal que somente os dois entendiam. Norteado por ininteligíveis qualidades, assim se fazia à relação estreitamente reservada e singular entre ambos. Era muito temente a ele, até mesmo porque não gostava de se sentir desconfortável quando na mira das vulnerabilidades. Bastante pragmático, ele via como único caminho sensato, mesmo que pouco racional, a construção - supersticiosa ou não - na crença, um pouco cega, da imagem poderosa de um ser universalmente superior, a derradeira válvula de escape no qual ele pudesse rogar suas pragas. Pois deus representava o acaso operando no meio de sua vida. E tentar entender isso era tão impossível e irracional quanto tentar acertar os números da Mega-Sena; ou, em um arremesso aleatório, conseguir colocar entre duas folhas no galho da árvore os restos da bagana de um cigarro aceso, quanto o feito exigisse probabilidades. E mesmo assim, ele não tinha a menor duvida que existiam pessoas capazes de realizar as duas proezas matematicamente improváveis.

Auto de data, aprendeu tudo sozinho. Só ouvia os outros falarem, e no dia seguinte, já sabia sabendo, já saia sabendo, já sabia fazendo... Já saia fazendo. Admitir e aceitar que a própria felicidade dependesse de outra pessoa... Era esse o maior dos defeitos e falhas que ele via nas relações amorosas. Misantropo, não se permitia depender em nada dos outros. Achava que não deveria ser assim. Lembrava dos ideais dos estudantes esquerdistas durante a ditadura - em que a política e os direitos sociais eram sobrepostos às mesquinharias da vida amorosa – e acreditava piamente que era assim que as pessoas deveriam se reger internamente. E se todas as relações modernas se resumissem a solidão interior, em punheta ele já teria casado com um milhão e trezentas mil mulheres. Para uma cabeça feita e exemplar raro como era o Barão, o amor nunca lhe enganou desde sua construção histórica. O mais violento de todos os mecanismos inconscientes de entorpecimento das massas, alcançava o ápice agora em uma sociedade impregnada de homens cujo estereotipo se assemelha aos modelas ideais de Weber dos especialistas sem espírito, não se fazendo tão difícil acomodá-los. E cada vez que o Barão reforçava essas pequenas verdades, ele ganhava cada vez mais força motivacional para investir tudo em si mesmo, estudos, ensinamentos, trabalho e esforço recompensado; pois somente ele era capaz de adquirir tudo o que ansiava para si mesmo. A relação consigo mesmo era sólida e totalmente confiável. O que fazia do sexo com os outros uma coisa boa e constantemente periódica desde quando entendeu que a pratica mantinha a sanidade mental e a saúde espiritual permitindo aos músculos cerebrais funcionarem sagazmente. E com as faculdades mentais em trabalho regular, o bem estar se espalhava para o corpo e a alma.

Parou de evitar emoções e sentimentos desde o dia em que percebeu que eles não lhe metiam mais medo. Aprendeu a exercer um mínimo permitido de domínio sobre eles a partir do momento que compreendeu que nunca chegaria totalmente a controlá-los. Vez por outra, se dava ao desfrute de um encontro verdadeiramente amoroso, pois somente relações mecânicas não eram muito saudáveis, e facilmente o faziam entrar em tédio. Não sentia mais perigo em entrar nesse arriscado jogo de cálculos, pois na realidade, não havia cálculos. Acordava, respirava e ouvia o canto dos pássaros, e a cada ciclo em que o cometa Halley cruza a órbita da Terra, ele também se apaixonava. Assim morreu O Meu querido Barão. Somente a mim ele tinha como único amigo, fiel criado e mordomo, o enfermeiro da casa de repouso dos idosos que adorava escutar suas birras e histórias todas as manhãs em que trocava suas fraldas. Agora morto, ele era um cadáver vítima do puro egoísmo de alguém que conseguiu todas as felicidades, e optou saboreá-las sob a cortina escura da solidão a dividi-las com estranhos, consangüíneos ou não. Um homem que preferia a noite ao dia porque se sentia mais seguro quando as ruas estavam livres dos ratos humanos. E mesmo assim ele acordava todos os dias bem cedo para cumprir com suas obrigações terrenas, pois o que mais temia era um dia ver sua própria vida ser invadida e dominada por essa espécie de roedores. 




Heitor Monte Cristo


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