23 de agosto de 2010

Manoel de Barros e o infra-ordinário


Os jornais só falam daquilo que é extraordinário. Do que não é comum, do que não faz parte do cotidiano, enquanto que, na antropologia o que interessa é olhar o detalhe. Ele sim é revelador! 

Talvez muito mais do que o grande acontecimento. Numa atitude radical da idéia de retratar não o excepcional, mas o infra-ordinário em oposição ao extraordinário, como defende o escritor francês Georges Perec, Manoel de Barros desenvolve seu projeto, não de uma língua grandiosa, rebuscada, mas de uma língua simples, rasteira, “pobre”, sem ser, contudo, simplório ou simplista, (o que é bem diferente de simples). Sua linguagem toca o chão, roça o solo das palavras, tirando delas o que elas têm de terra, de mais natural.

Esse trabalho com a simplicidade, com as coisas rasteiras do chão, também se configura como um projeto. A preocupação de falar sobre poética, como dito anteriormente, está ao lado da procura por essa “pobreza” dos temas, “pobreza no sentido” de que aquilo que Manoel de Barros escolhe para tratar na sua poesia é sempre algo “pequeno”, “ínfimo”, geralmente descartado pela maioria dos poetas. Na sua poesia, têm lugar privilegiado e seguro os insetos (formigas, principalmente), os pássaros (beija-flor, bem-te-vi, rolinha, andorinha), bichos que rastejam (sapos, lagartos, caranguejos), lembrando as “coisas rasteiras” que ele elege como tema.

Para o poeta, tratar dessas coisas rasteiras o aproxima de uma imagem, o lança ao início das coisas, há um tempo mítico, bíblico, primitivo. Essa busca é também uma busca pelo tempo anterior à linguagem, em que nada existia além das coisas. Aí é que está o mítico de sua poesia, o primitivo, já que num tempo primordial não há uma linguagem, há simplesmente as coisas. Manoel de Barros parece querer alcançar a coisa em si, em seu estado bruto, em seu estado de coisa mesmo. Por isso, é que como poeta ele diz: “As coisas tinham para nós uma desutilidade poética. Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber. A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras”.

Da palavra à coisa, do ser à natureza, do agora ao original, dá página à pedra. Para ele, a linguagem não deve servir a um sentido pronto, mas deve enlouquecer o sentido desarticulando a língua que utilizamos todos os dias até confundir nossa lógica, que empobrece a língua em apenas uma possibilidade de expressão. Esse é o percurso da poesia de Manoel de Barros. Assim é que o poeta pode “voar fora da casa”, pode alcançar os “deslimites” da palavra, o além da linguagem, o cerne das coisas, sua matéria é, enfim, o que escapa à expressão por meio de palavras. Portanto, um merecido salve a Manoel de Barros!


Ricardo Magno

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