16 de agosto de 2010

O jardim do solar

Aquele verso de “Panis et Circensis” (“mandei plantar/folhas de sonho no jardim do Solar”) diz respeito ao Solar da Fossa, que era um grande cortiço transformado em hotel, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Era um lugar barato e todo mundo da bossa nova, da jovem guarda e da tropicália conviveu ali. E os malucos realmente plantavam maconha lá (“folhas de sonho”). Mas a maluquice é muito relativa, as aparências enganam. Havia muito mais gente da MPB usando drogas do que os roqueiros. O iê-iê-iê era careta, até.
Publicamente, a convivência era ruim, mas na intimidade era um circo. Existiam vidas em comum, freqüentavam-se os mesmos restaurantes para bater papo. O Cave, na Rua Eduardo Prado, em São Paulo, por exemplo: todos apareciam às 3 da manhã para comer picadinho. E escutava-se um rockinho para dançar! Esse fosso musical foi alimentado por jornalistas e ideólogos rançosos, era uma guerra criada artificialmente. Os festivais, claro, se beneficiavam do problema. A Record tinha os programas Jovem Guarda e o Fino da Bossa, que preferia colocar como concorrentes, porque imaginava que assim teria maior repercussão. Ambos tinham audiência, mas as pessoas assistiam porque o barato da época era a música.
É claro que aconteciam atritos. Numa noite, Geraldo Vandré discutiu com Caetano e Gal, afirmando que “Baby” era uma merda e que eles tinham de apoiar a canção dele no festival, porque ela sim faria a revolução. Houve também a famosa passeata contra a guitarra elétrica, em 1967, insuflada pela Record. É gozado porque na linha de frente estavam Elis Regina e Gilberto Gil de braços dados. E ele já estava preparando “Domingo no Parque”...
Era impressionante! O Gil ouvia Sgt. Pepper o dia inteiro. Só depois se percebeu o que ele estava tentando captar. Quando aconteceu a tropicália, ele e o Caetano já tinham o aval do público. Isso tudo acontecia em São Paulo. No Rio de Janeiro, “Travessia” era o grande sucesso. Não havia uma definição clara entre o que o público e os artistas queriam, daí esse abismo.
O pior mesmo aconteceu nas gravadoras. Havia o elenco “comercial” e o “artístico”. O primeiro grupo bancava os discos do segundo. Viravam a cara para a jovem guarda e era ela que financiava todo mundo! Os Golden Boys e o Trio Ternura fizeram backing para vários artistas, mas ninguém queria parceria com eles porque eram do iê-iê-iê; o César Camargo Mariano tocava no Som Três acompanhando o Wilson Simonal, que era desprezado por fazer pilantragem...
As barreiras se romperam com o tropicalismo, foi algo libertador. Em 1968, todos eram tropicalistas - até a Beth Carvalho apareceu tocando theremin! Não se tira o mérito de Gil e Caetano, mas tudo aconteceu porque o Rogério Duprat indicou Mutantes e Beat Boys para acompanhá-los. E não podemos esquecer que o Ronnie Von já tinha dois discos rigorosamente psicodélicos que são um primor. São seminais, foram seus Sgt. Pepper. O problema no Brasil é o excesso de ego. Todos querem ser os grandes descobridores e não “liberam” as referências. Isso deforma a nossa história.


Fonte: Revista Super Interessante espcial história do rock 

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