5 de novembro de 2010

Pedro Cem




Nascido no interior do Nordeste, menino forte e sagaz, logo Pedro Cem rasgou o sertão e o agreste escrevendo a sua história. Durante o dia, corria atrás de pipira, fazia histeria no quintal alheio. À noite, brincava de morto - vivo com os sonhos dos outros ao contar os vintes do céu em que cada estrela representava a sua ambição. 

Cresceu! Virou gente grande. E foi trabalhar na única mercearia da cidade. Pobre tanto quanto os indicadores sociais que mal ele conhecia, ficava de pé e vazio quase todos os dias. Quando com 16 anos ele arranjou um trabalho na seção de perfumaria digna das tabacarias que imperavam naquela época, nem hesitou diante das lamentações da mãe ao ver o filho mais velho recusar a oportunidade.

Desde garoto, Cem tinha no peito o desejo sedente de seguir rumo em direção à cidade. Sentia profundamente que caçar, limpar o curral e jogar milho para as galinhas não faziam parte da sua realidade. E a mesma muda de roupa que sujava durante o dia era a mesma que a mãe lavava cuidadosamente durante a noite, para ele trajar como se fosse um vestido de gala enquanto na perfumaria os vendedores mais velhos tripudiavam a sua miséria.

O suar de seu pai escorria pelo rosto de todos os filhos. Há muito Pedro matava a sede com a única e mesma saliva. E vez por outro, quando voltava do almoço cambaleando, os amigos da loja já sabiam de cara o que faltava para o pobre diabo. Sem pensar, logo lhe mandavam para o ambulatório levar injeção de vitamina para suprir o arroz e o feijão que geralmente ele não tinha em casa. Dos nove irmãos, ele era o quarto mais velho e fazia questão de comer somente depois que os mais novos haviam se saciado. A comida era sempre tão pouca que os raros grãos de feijão se perdiam na vastidão daquelas bocas que mal tinham dentes trocados.

Perdeu a conta de quantas vezes dormiu ouvindo foguetes sem saber o que era a festa da virada de ano. De tanto tomar no cú aprendeu a andar com o rabo encostado na parede. Dos míseros quilos da mocidade, a cada ano seu corpo foi tomando mais forma. Lá se sabe como e porquê, virou presidente do grêmio estudantil de sua escola. Fazia festas, era respeitado. Mas, pela hombridade de chefe da casa e a calamidade de sua família, desviou alguns trocados da tesouraria até conseguir sobrepor a família acima da linha da miséria, forrar e prolongar com mais alguns cômodos, os velhos cantos da casa. À noite, na hora de rezar, pedia perdão para deus, pois sabia que o furto era por uma justa causa.

Quando a família se mudou para a cidade, aos 18 anos ele já era o mais novo gerente que aquela tabacaria já havia tido. E quando quebrou uma caixa cheia de perfumes recém-chegados, nem deu para ficar preocupado. Ele tinha uma meta e visualizava-a todas as vezes que voltava para casa e sofria na pele todas as necessidades que sua grande família ainda passava.

Quando percebeu que não havia mais nada a se fazer, não tinha mais espaço para crescer, resolveram mudar de ares. O pai, que foi primeiro, de cara logo deu um jeito de matar a saudade dando umas namoradinhas. Quando toda a família veio o patriarca não queria mais nada com eles.

O irmão mais velho casou. As duas irmãs subseqüentes construíram família mesmo antes da partida do interior. E lá mesmo ficaram. E Pedro Cem, agora o mais velho, aos 25 anos de idade, mal sabia o que era ter uma namorada. Chegava faminto do trabalho, e quando tinha sorte do dono da quitanda vender fiado, rachava um ovo em seis partes enquanto via a mãe de longe passando fome se confortar por ver os filhos se alimentarem em mais um dia de vida em que deus não foi lhes visitarem. Por isso é que Pedro Cem, de hábito, só faz o prato depois do último.

Na cidade grande conseguiu estudar até onde pôde. Trabalhou todos os dias até o sol raiar. Obteve respeito, comprou mercearia em local privilegiado no centro da cidade. Aproveitou a expansão do município e foi crescendo junto com ele. Ingênuo e ansioso para recuperar o tempo perdido pelas dificuldades, distraiu-se algumas vezes e acabou perdendo algumas oportunidades. Mas quando a derradeira apareceu, soube aproveitar e fazer jus aos anos de martírio.

Logo passou a ser o ponto de apoio da sua casa. Pai, mãe, irmãos e sobrinhos. Todos o tinham como exemplo. Homem inteligente, embora pouco estudado; conheceu mulher mais nova, de família humilde, mas boa. Bem criada! Não pensou duas vezes antes de casar. A essa altura já tinha 35 anos, era rico, bem sucedido. Pagava os funcionários públicos de toda a cidade e não tinha um policial que não reconhecesse seu sobrenome. 

Pedro Cem! Para cada objeto, ele tinha cem!

Os anos iam se passando enquanto ele aumentava a fortuna sem se preocupar com os golpes do acaso. Teve filho. Inventou sobrenome importante e fez de tudo para essa criança não carregar os genes que cicatrizavam sua alma. E só se alimentava depois que seu filho já havia se alimentado. Queria ter a certeza de que o menino estava farto.

Sofreu acidente, quebrou a perna. Ficou mais de dois anos sem andar. A medicina dizia: nunca mais! Enquanto sua mãe rezava e o medicava a base de fitoterapia. Por força do destino impugnado pelas novas circunstâncias, a mulher aprendeu a dirigir o carro. E agora era ela quem levava todos os dias a sua criança para o colégio. Pedro Cem enfrentava uma nova batalha: voltar a ficar de pé sozinho.

Queimaram-se fazendas, afundaram-se os barcos. E toda a riqueza de Pedro Cem retornava para o brejo. A ruína e a derrocada o consumia todas as noites lhe dando força até calçar os tornozelos com glória e quase por um milagre ele retornar a posição de homo sapiens. Só que agora ele era o Pedro Cem que já teve e hoje não tem. Quem quiser dá uma esmola, que dê. Se não quiser ele também não fará empenho. Orgulhoso por já ter tido e feliz por ainda poder ter.



Ricardo Magno



2 Comentários:

Angar disse...

ficou legal !!!=)

Unknown disse...

Quando li o título, pensei que fosse outra homenagem ao "Cavaleiro de Ébano"..mas esse é outro Pedro..Massa tbm....Beijos!!! ;)